ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES ACERCA DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL AMERICANA

O QUE É CHAPTER 11?

· O Chapter 11 é o procedimento que permite a reorganização de uma empresa sob as leis de falência norte-americanas. É conteúdo do US Code.

· É o equivalente, nos Estados Unidos, à recuperação judicial brasileira.

· Em contraste, o Chapter 7 trata da liquidação de tal empresa.

· A maioria das companhias abertas e fechadas são elegíveis para o Chapter 11, com a exceção das entidades que estão sujeitas a certos sistemas regulatórios estatais ou federais, como bancos e seguradoras.

· O Chapter 11 está também disponível para entidades estrangeiras, desde que tenham ativos nos EUA.

REPRESENTAÇÃO/LEGITIMIDADE

· As partes podem se auto-representar sem um advogado (pro-se representation).

· O pedido pode ainda ser feito por credores que atendam determinados requisitos (11 U.S.C. §§ 301, 303.), porém isso é mais raro nos Estados Unidos. Ao fazer o pedido voluntário o devedor deverá preencher o Formulário 1, conforme exigência da Conferência Judicial dos Estados Unidos, a menos que de outra forma autorizado pelo tribunal. O pedido voluntário deverá incluir informações como o nome do devedor, o número de seguro social ou de identificação fiscal, residência, localização dos principais ativos, o plano do devedor ou sua intenção de apresentar um plano, e um pedido de concessão de prazo nos termos do devido capítulo do Código de Falência. Ao fazer o pedido de recuperação judicial, seja ele voluntário ou involuntário, o devedor passa então, salvo hipótese de fraude, a “debtor in possession, o que permite ao devedor seguir na administração do negócio. 11 U.S.C. § 1101).

DEVEDOR EM POSSE

· Durante o processo de Chapter 11, a assembleia de acionistas, o conselho de administração e os administradores continuam operando a empresa, atuando em caráter fiduciário para todos os stakeholders do patrimônio da empresa.

· O debtor in possession, isto é, o devedor que permanece na administração do negócio, é uma das figuras centrais em um processo de recuperação nos Estados Unidos. Apesar de se poder pensar que a mesma pessoa que teoricamente levou a empresa àquela situação seria pouco adequada para resolver essa situação.

· No entanto, se houver fraude, o devedor não poderá permanecer na gestão e será nomeado pelo U.S. trustee ou o administrador de falência um trustee para administrar a recuperação.

· O debtor in possession ou o interventor têm os chamados poderes de “reversão”. Com tal dispositivo, transferências feitas determinado tempo antes do pedido de recuperação judicial estão sujeitas à análise e, caso sejam encontradas irregularidades, será possível desfazer tais transferências. Ao evitar determinada transferência de propriedade, o debtor in possession pode cancelar a transação e forçar a devolução do pagamento ou da propriedade, que ficam então disponíveis para todos os credores. Geralmente, e sujeito a diversas defesas, o poder de evitar transferências é eficaz contra transferências feitas pelo devedor dentro de 90 antes da apresentação do pedido. Mas as transferências para pessoas próximas (isto é, parentes, sócios, e

diretores ou executivos do devedor), feitas até um ano antes da apresentação podem ser revertidas.

COMITÊ DE CREDORES QUIROGRAFÁRIOS

· O comitê de credores quirografários (unsecured creditors) desempenha um papel de supervisão e equilíbrio das atividades da empresa durante o processo de Chapter 11.

· O comitê é composto pelos maiores detentores de créditos (claims) sem garantia.

PEDIDO VOLUNTÁRIO

· Solicitação breve pela empresa optando pelo Chapter 11, juntamente com outras solicitações mais complexas relacionadas à continuidade do curso normal de seus negócios, pagamento de funcionários, contratação de assessores, aprovação de financiamentos etc.

PEDIDO INVOLUNTÁRIO

· Geralmente requer 3 ou mais credores que tenham créditos (claims) sem garantia.

· Estes credores geralmente devem demonstrar que a empresa não está pagando tempestivamente suas dívidas.

SUSPENSÃO AUTOMÁTICA

· O pedido de recuperação judicial sob o Chapter 11, institui uma suspensão automática (automatic stay) a exigibilidade dos créditos de todos os credores, de modo que estes ficam impedidos de tomar determinadas medidas contra a empresa, como, por exemplo, iniciar novas ações judiciais, procurar obter para si de outro modo acesso aos bens da empresa ou executar penhoras.

FINANCIAMENTO DIP

· O financiamento de “devedor em posse” (debtor in possession, ou DIP) é usado caso os recursos financeiros da empresa (caixa e recebíveis) não sejam suficientes para financiar o procedimento sob o Chapter 11.

· É considerado um empréstimo “seguro” por estar sob a proteção do Tribunal de Falências e tem status de “super prioridade”: o direito de ser pago antes de todas as demais despesas do processo e de todos os créditos sem garantia anteriores ao início do processo.

· O pagamento do financiamento DIP pode ser garantido através de penhoras sobre os ativos da empresa.

· Permite à empresa continuar normalmente suas operações.

USO DE COLATERAL DOS CREDORES

· A empresa pode continuar utilizando colateral não-financeiro (non-cash collateral) de um credor, sujeito ao direito do credor de solicitar e receber “proteção adequada” contra qualquer diminuição de valor decorrente do uso.

· A empresa não pode usar colateral financeiro (cash collateral) de um credor sem o seu consentimento ou a determinação do Tribunal de Falências de que os recursos do credor estão “adequadamente protegidos”.

FERRAMENTAS PARA REABILITAR O NEGÓCIO

· O poder de rejeitar (ou seja, terminar, rescindir) contratos e leasings onerosos.

· O poder de manter leasings e contratos importantes e cedê-los a terceiros, independentemente das disposições de cessão desses contratos.

· Limitações legais a pedidos de indenização por rescisão de certos leasings e contratos de trabalho.

· A capacidade de rescindir acordos coletivos em determinadas circunstâncias.

· A capacidade de vender ativos de forma livre e sem ônus, penhoras ou hipotecas.

ELABORAÇÃO DE UM PLANO DE NEGÓCIOS

· A empresa e seus assessores financeiros preparam projeções para a empresa pósreorganização (receitas, despesas, fluxo de caixa).

· O plano de negócios identifica a viabilidade da empresa pós-reorganização e a capacidade da mesma de pagar as dívidas que serão assumidas pela empresa reorganizada, e é usado para calcular o valor da empresa (enterprise value).

DETERMINAÇÃO DE DEMANDAS

· O Tribunal de Falências estabelece uma data limite para a apresentação de comprovação de demandas (claims) e verificações de créditos.

· Se o credor não apresentar suas demandas (claims) antes da data limite, elas são extintas e tal credor não terá direito a uma nova notificação de eventos no processo de Chapter 11.

PLANO BASE DE REORGANIZAÇÃO

· Separação de todos os créditos (claims) e participações acionárias em “classes” substancialmente similares.

· Determinação do tratamento relativo necessário para cada classe conforme determinado pelo Código de Falências (a “regra de prioridade absoluta”).

· Atribuição do valor disponível (valor da empresa e fontes adicionais de valor) em uma cascata de pagamentos de acordo com as prioridades relativas de pagamento.

· O plano será aceitável para pelo menos uma classe de credores prejudicados?

NEGOCIAÇÃO DO PLANO

· Vantagens de um plano consensual:

1- Menos atrasos na recuperação da empresa.

2- Menos despesas para confirmar o plano.

· Desvantagens de um plano consensual:

1- As partes podem ter que concordar em renunciar a alguns de seus direitos.

VOTAÇÃO DO PLANO

· Plano consensual:

1- É necessária a aprovação por todas as classes prejudicadas.

2- O voto da classe é determinado por 2/3 do valor dos créditos (claims) votadas e 1/2 do número de votos.

· O plano não-consensual (“cram-down”) precisa que apenas uma classe prejudicada aceite o plano (excluindo os votos dos “insiders” da empresa).

· Em troca, os dissidentes têm duas proteções principais:

1- Regra “justa e equitativa”: os credores com preferências devem ser pagos antes dos credores sem preferências.

2- Sem “discriminação injusta”: Créditos (claims) e interesses substancialmente semelhantes devem ser tratados de maneira substancialmente semelhante.

· Cada credor (mesmo que tenha sido votado por sua classe) tem o direito de receber pelo menos o mesmo valor que receberia em uma liquidação da empresa através de um processo de Chapter 7.

CONFIRMAÇÃO DO PLANO

· Uma vez confirmadas, as disposições do plano se tornam vinculantes para todos, inclusive terceiros, e seus direitos são regidos pelo plano e pelo Tribunal de Falências.

· As dívidas anteriores da empresa são quitadas em um plano de reorganização de Chapter 11, a não ser que o plano preveja o contrário.

· A “vida” da empresa começa novamente e não é mais “sujeita à tutela judicial”.

FALÊNCIA E BENS NÃO ATINGIDOS

· O fato de declarar falência ou fazer um pedido de recuperação não significa que todos os bens do devedor estarão disponíveis para os credores. Há determinados bens que escapam à divisão entre os credores. Nos Estados Unidos, devido à possibilidade de falência de pessoa física (único meio de reabilitação no caso de insolvência), é de especial importância essa exceção. É nesse quesito que residem as principais diferenças entre os Estados. Embora o foco desse trabalho seja a recuperação judicial corporativa, vale mencionar algumas hipóteses de bens excluídos da falência de pessoa física (Título 11 – Capítulo 5 – Seção 522 do US Code):

1- Veículos automotores até determinado valor.

2- Roupas na proporção do razoável.

3- Os utensílios domésticos necessários e mobiliário razoável.

4- Joias até determinado valor (o anel de casamento é um exemplo do que pode ser mantido)

5- Pensões

6- Uma determinada parte da casa do devedor (isto é, até determinado valor)

7- Uma parte dos salários não pagos, mas já devidos.

8- Benefícios públicos, incluindo assistência social, previdenciária, seguro-desemprego, acumulados em uma conta bancária.

9- Pagamentos recebidos em decorrência de indenização por danos.

· Alguns dos bens que o devedor deve disponibilizar em um processo de falência/recuperação são:

1- Coleções de selos, moedas e outros artigos de valor

2- Um segundo carro

3- Uma segunda casa ou casa para recreio

4- Valores em espécie, contas bancárias, ações, títulos e outros investimentos

5- Objetos de família

6- Instrumentos musicais caros, a menos que o devedor seja músico profissional

DIREITO COMPARADO – PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE A LEGISLAÇÃO RECUPERACIONAL BRASILEIRA E A AMERICANA

· No Brasil, os bens do devedor são uma garantia comum dos credores. Porém, determinados créditos, em virtude de sua natureza ou qualidade, têm preferência sobre os demais53. Nos Estados Unidos os bens do devedor cumprem papel similar, no entanto, a ordem de preferência é mais flexível e pode ser determinada pelo juízo.

· Pode-se afirmar ainda que a legislação norte americana é mais ampla que a brasileira, uma vez que serve para praticamente todas as modalidades empresariais, estendendo-se a empresas públicas, sociedades de economia mista, instituições financeiras públicas ou privadas, cooperativas de crédito, consórcios, entidades de previdência complementar, sociedades operadoras de plano de assistência à saúde, sociedades seguradoras, sociedades de capitalização e outras que têm seu mecanismo de falência regido por regras distintas

· Outra diferença relevante entre a lei americana e a lei brasileira é o fato de a lei brasileira só permitir três classes de credores, sendo eles os credores trabalhistas, credores com garantias reais ou quirografários, enquanto a lei americana permite outras classes de credores. Essa situação facilita a negociação, além de proporcionar maior celeridade ao processo.

· Outra diferença muito interessante, também percebida pelo magistrado supracitado é com relação a atuação do fisco, o que traz que o próprio estado que estende a mão com a possibilidade de recuperação, no caso do Brasil, é pouco flexível com seus próprios créditos.

· No que concerne às questões formais, verifica-se que o prazo de apresentação do plano de recuperação nos Estados Unidos é de 120 dias, ou seja, o dobro do prazo estabelecido no Brasil, onde ele deve ser apresentado em 60 dias, além de o juízo poder estender o prazo até 18 meses.

· Ainda, as funções exercidas pelo administrador judicial também são diferentes, uma vez que no Brasil ele atua como fiscal do devedor e nos Estados Unidos, além de supervisionar o devedor, o administrador de falência também exerce funções administrativas, as quais estão previstas no § 341 do capítulo 11 do U.S.C.

· Há também algumas semelhanças, vez que como já foi dito, a lei brasileira inspirou-se na legislação falimentar americana, uma delas é a manutenção do devedor na administração dos negócios, exceto nos casos de fraude.

· Um outro ponto diferente do Brasil, onde é muito comum que o credor faça o pedido de falência com o fim de conseguir o pagamento de seus créditos, uma vez feito o pagamento o pedido é suspenso, isto é, pedir a falência do devedor é muitas vezes somente um modo de dissuasão, uma forma de execução judicial.

· O Cram down, com instituto similar na Lei Brasileira, no artigo 58, parágrafos 1 e 2 da lei de recuperação e falência, não foi transplantado para a legislação brasileira tal qual é usada na americana. As restrições de quórum não permitem ao juiz impor o plano aos devedores como seria possível nos Estados Unidos, no Brasil é necessária a aprovação da maioria e mesmo na classe dissidente é necessário que ao menos um terço dos credores daquela classe tenham aprovado o plano.

Jéssica Melo do Nascimento, advogada especialista em Recuperação de Crédito e Contencioso Cível Estratégico.

Acompanhe o S&S no Linkedin

Compartilhe isso

Conteúdos relacionados