Em videogames o termo Farming designa o ato de, tendo condições de passar para etapas mais difíceis, permanecer repetindo tarefas previsíveis com o intuito de acumular itens, dinheiro ou experiência, sem precisar enfrentar desafios ou situações novas. Farming deu origem ao anglicismo “Farmar”/”Farmando”, mas que poderia ser traduzido no Brasil como “Fazendando”, sendo notoriamente aplicável Fazenda Pública Brasileira.
Em setembro, a Receita Federal respondeu à Consulta de nº 446, a respeito do cálculo de imposto de importação sobre jogos eletrônicos. A Consulente questionou se se aplicaria, com base no art. 81 do Decreto Nº 6.759/2009, dispositivo que estatui que apenas o custo do suporte físico dos dados será considerado para fins de valor aduaneiro.
A Receita, como de se esperar, respondeu que jogos de videogame não se beneficiariam de tal tratamento tributário. Sustentou que à época da edição da norma os jogos de videogames utilizavam cartuchos como suporte de dados, tendo esse suporte sido excluído do tratamento benéfico, o que demonstraria a intenção do legislador. Tal entendimento, entretanto, é uma distorção do texto da lei e tem compromisso apenas com a arrecadação, ignorando o atual Estado da Arte da indústria, do mercado e do Direito.
O Direito Tributário é um ramo do direito no qual, ao Estado, aquilo que não é permitido é proibido. A norma tributária é uma autorização para o Estado interferir no patrimônio dos particulares, devendo ser interpretada restritivamente. Por isso, a interpretação da lei por analogia não pode acarretar na exigência de tributo não previsto em Lei, além de se interpretar literalmente as isenções.
No caso, o decreto afirma, literalmente, que “o valor aduaneiro de suporte físico que contenha dados ou instruções para equipamento de processamento de dados será determinado considerando unicamente o custo ou valor do suporte propriamente dito” e qualquer um que tenha acesso aos produtos percebe que softwares de jogos e quaisquer outros obedecem ao mesmo funcionamento: são programas que ao receber informações do usuário realizam uma certa tarefa. A Lei não discrimina o objeto final de tais funções (se lazer, pesquisa, estudo ou trabalho) e a Receita não deveria discriminar igualmente.
Tanto é possível falar-se em equivalência de produtos que não escapa a ninguém que, atualmente, a grande maioria dos jogos é lançada em múltiplas plataformas (Consoles e Computadores). Pretender justificar o tratamento diferenciado entre os softwares com base no aparelho ao qual se destinam permitiria que o mesmo jogo sofresse tratamento tributário diferente se fosse destinado ao PC ou a um console.
Por outro lado, até mesmo o tratamento diferenciado aos aparelhos é questionável. Diversas entidades (dentre elas o Exército Norte Americano) já utilizaram videogames como unidades estáveis de processamento de dados[1] e alguns programadores rodam jogos em ambientes como dos programas Microsoft Excel ou em navegadores de internet. Completando a inviabilidade de se criar distinção entre os produtos, vários estúdios de videogame disponibilizam em seus jogos ferramentas de edição de softwares que permitem que os jogadores criem conteúdos e os disponibilizem gratuita ou onerosamente. A Bethesda atualmente mantém o Creation Club em Skyrim e Fallout 4, mas muito antes Bioware disponibilizou a engine de Neverwinter Nights para criação de módulos e servidores de jogos.
Mudar a interpretação das normas para justificar a intromissão estatal no consumo dos particulares ofende a segurança jurídica. A Fazenda Pública precisa obedecer ao princípio da Anterioridade para criar ou majorar impostos, sendo essa uma garantia individual protegida por cláusula pétrea. Permitir que a Receita interprete extensivamente “o espírito da lei” para cobrar imposto com cálculo distinto do que a lei permite causa notória insegurança jurídica. É notório, ainda, que a preocupação é com a arrecadação: para softwares de jogos, a mudança no suporte físico não modifica a base de cálculo do imposto, mas para livros, a mudança do suporte físico modificava a imunidade tributária até o Supremo Tribunal Federal pacificar a questão.
O Lazer não pode ser considerado um bem menor, que recebe tratamento tributário mais oneroso. Isso seria incoerente para com as próprias políticas nacionais que outorgam benefícios fiscais a empresas que atuam ou colaboram neste mercado. O Legislador não dá menos imunidade tributária para os livros de lazer que para os livros técnicos ou profissionais, assim como o Fisco não pode fazê-lo. Da mesma forma, o Legislador não distingue softwares de lazer de softwares profissionais ou técnicos, e o Fisco não pode, igualmente, fazê-lo.
A fronteira entre o lazer e a produção se tornou extremamente tênue nos últimos anos. A pretensão da Receita em tributar de forma distinta os softwares de jogos não encontra qualquer justificativa que não o desejo de continuar tributando como há duas décadas sem se adequar à nova realidade. Os jogadores já entenderam que “farmar” é uma prática preguiçosa e covarde pois tira do jogo o desafio de enfrentar novas situações. A Fazenda deveria fazer o mesmo.
Paulo T. Vasconcellos é sócio do Santos e Santana Advogados.
Fonte: JOTA, 18/10/2017
Link: https://goo.gl/4L1sGP