A aplicação indiscriminada da Súmula 492 do STF gera grandes impactos para locadoras de veículos onerando o mercado e seus consumidores

Por Amanda Fagundes Magraner

Empresas do ramo têm por sua atividade principal a locação de veículos de sua propriedade a terceiros, que, ao celebrarem o contrato, por livre e espontânea vontade, assumem a posição de locatários.

Nessa relação, as partes devem observar os termos pactuados contratualmente e a legislação vigente. Nesse sentido, o locatário não deve entregar a posse do veículo a outrem e deve observar as regras de trânsito e condições contratuais, porém, cabe ressaltar que tais condutas fogem da ingerência da locadora no período em que o veículo permanece na posse do locatário.

Durante esse período, o locatário pode vir a se envolver em acidentes de trânsito, causando danos a terceiros, que, nos termos do ordenamento jurídico vigente, têm o direito de buscar indenização pelos danos sofridos.

Para solucionar eventuais lides que tenham por objeto os danos suportados por terceiros decorrentes do uso de veículo locado, o Supremo Tribunal Federal, em 1969, editou a súmula 492, pela qual ficou determinado, à época, que: “A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causados a terceiro, no uso do carro locado.”

Ocorre que há uma divergência entre o texto da Súmula e os precedentes que a ensejaram, de forma que a sua aplicação em todos os casos que envolvem veículos locados não seria correta, cabendo ao Poder Judiciário, portanto, delimitar quais as condutas adotadas pela locadora, que geraram a sua responsabilização.

A edição de uma Súmula tem como finalidade fixar a diretriz de julgados nas instâncias inferiores, com simplificação de julgamentos a partir da uniformização da jurisprudência, em decorrência de reiteradas decisões acerca de uma mesma situação jurídica, para aplicação do entendimento em futuras lides. Assim, a aplicação de uma Súmula se fará em casos análogos ao seu texto, cabendo ao julgador analisar a sua aplicação ao caso concreto.

No que diz respeito à Súmula 492 do STF, cabe destacar que foi editada há mais de 50 anos, e teve apenas três precedentes. O primeiro foi o Recurso Extraordinário nº 60.477, no qual restou verificado que a locadora agiu com negligência do celebrar o contrato de locação, pois o locatário apresentou CNH de terceiro e, mesmo assim, o veículo lhe foi entregue. O Ministro Relator apontou expressamente que a negligência da locadora ao celebrar o contrato era determinante para a sua responsabilização:

“entendendo ter havido negligência da locadora ao alugar o veículo a pessoa não habilitada e ser aquela, portanto, corresponsável pelo evento danoso, recorrendo à noção de culpa da locadora.” [1]

O segundo foi o Recurso Extraordinário nº 62.247. Nesse, o Supremo Tribunal Federal condenou a locadora, em solidariedade com o locatário, ao pagamento de indenização à vítima do acidente de trânsito, sob o fundamento de que a locadora não teria verificado a solvência do locatário, ao celebrar a contratação. Considerando que o locatário não tinha bens para quitar a indenização, a responsabilidade foi estendida à locadora.

Já o terceiro precedente foi o Recurso Extraordinário nº 63.562, no qual a locadora foi condenada solidariamente com o locatário, por ter agido com culpa, no momento da locação do veículo.

Os precedentes fundamentaram a responsabilidade solidária da locadora de veículos pela indenização na responsabilidade civil subjetiva, ou seja, constataram a existência de culpa da locadora no caso concreto, para que ela fosse responsabilizada.

Muito embora os precedentes tenham responsabilizado a locadora de veículos por essa ter agido com culpa, o texto da Súmula 492 do STF atribui, em toda e qualquer situação, a responsabilidade solidária entre a locadora e o locatário. Ou seja, determina que a locadora será responsabilizada, mesmo quando não tiver agido com culpa no ato da locação do veículo.

Contudo, a reponsabilidade solidária por um ato ilícito decorre de lei ou da vontade das partes, sendo que não há nenhum dispositivo de lei que disponha expressamente a solidariedade da locadora com o locatário, pelos danos por ele causados perante terceiros.

A edição da Súmula 492 do STF é passível de crítica, já que, não consta em seus precedentes a fundamentação jurídica para a solução nela enquadrada. A aplicação da aludida Súmula, apenas a partir da literalidade de seu teor, sem levar em consideração os seus precedentes e o caso concreto, atribuirá a responsabilidade objetiva e consequente culpa à locadora em toda e qualquer situação, sem que exista previsão legal para tanto.

Nessa hipótese, a locadora de veículos, ao ser responsabilizada em conjunto com o locatário, estaria assumindo uma posição não prevista no contrato, como se fosse uma seguradora, passando a garantir, em qualquer hipótese, eventuais danos decorrentes do uso do veículo, os quais não deu causa.

A aplicação indiscriminada da súmula 492 do STF ao caso concreto gera um enorme impacto no mercado de locação de veículos, que evoluiu muito desde que ocorreu a sua edição e está constantemente se adaptando às necessidades de seus clientes.

Fato é que houve um significante aumento das locações realizadas, seja por empresas interessadas em terceirizar a sua frota, diminuindo, assim, os custos da manutenção de frota própria, seja por pessoas físicas, para lazer e locomoção em viagens, ou o que tem sido bastante comum, pelo desenvolvimento de atividade comercial, consistente no transporte de passageiros por aplicativo.

Cabe à locadora agir licitamente ao proceder a locação de um veículo, adotando todas as precauções necessárias, inclusive, conferindo se os locatários possuem habilitação para tanto. Contudo, a adoção de tais providências pela locadora não necessariamente evitará a ocorrência de acidentes de trânsito envolvendo os veículos locados, já que cabe ao locatário zelar pela correta e regular condução do veículo.

Há casos em que os locatários deixam de observar as regras de trânsito, utilizam o veículo para cometer crimes, dirigem embriagados, entregam a condução do veículo a terceiro, mesmo que seja vedado pelo contrato, causando acidentes de trânsito e lesando terceiros.

Em que pese a locadora não tenha praticado qualquer das condutas citadas acima para dar causa ou contribuir para a ocorrência do acidente de trânsito, mesmo assim, o Poder Judiciário, na grande maioria dos casos, acaba condenando a locadora a ressarcir o terceiro lesado com base no entendimento restrito e desatualizado da Súmula (especialmente diante do contexto social atual), e dissociado do caso concreto.

A mesma situação é vivenciada pelas empresas intermediadoras de transporte terrestre por aplicativo, que também são responsabilizadas pelos danos decorrentes de acidente de trânsito, sem que o Poder Judiciário analise se houve ato culposo quando da realização da parceria com o motorista. Contudo, a situação dessas empresas se agrava, pois além de não existir previsão legal para a sua responsabilidade, não há súmulas nesse sentido.

A evolução do mercado, somada aos impactos da pandemia do COVID-19 aumentaram significativamente as locações de veículos a motoristas parceiros de aplicativos que intermediam o transporte de passageiros. Veja-se que, nessa hipótese, há uma dupla checagem das condições do motorista para conduzir o veículo, tanto da locadora como da empresa de aplicativo, mas, mesmo assim, o Poder Judiciário atribui às empresas a responsabilidade pela ocorrência do acidente de trânsito.

A solução costumeira adotada pelo Poder Judiciário, a partir da mera aplicação da Súmula 492 do STF gera um enorme impacto econômico às locadoras, as quais, muitas vezes, são condenadas ao pagamento de indenizações milionárias aos terceiros lesados ou aos seus familiares. Os aplicativos que intermediam o transporte terrestre por aplicativo também sofrem grande impacto econômico ao serem responsabilizados em solidariedade com o motorista, mesmo que não exista expressa previsão legal para tanto.

Uma condenação desse porte pode acarretar na inviabilidade do prosseguimento da atividade comercial pela locadora e pela empresa intermediadora de transporte por aplicativo e certamente atingirá, não só as empresas e seus funcionários, como, também, o mercado como um todo, onerando os custos desse serviço.

A fim de mitigar as consequências da aplicação desmedida da Súmula 492 do STF, quando a locadora for acionada judicialmente por um acidente de trânsito, será necessário demonstrar ao Poder Judiciário que o caso concreto não é semelhante aos precedentes que ensejaram a edição da aludida Súmula, ou seja, realizar o distinguish[2] entre o entendimento que a gerou e o caso concreto.

Alguns juízes e tribunais acertadamente realizam o distinguish e acabam afastando a aplicação da súmula 492 do STF ao caso concreto, por verificarem que a locadora não contribuiu para a ocorrência do acidente de trânsito, nem cometeu ato ilícito:

“DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL – APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS – ACIDENTE DE TRÂNSITO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA ESTATAL – ILEGITIMIDADE DA LOCADORA – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA AFASTADA – SÚMULA 492 DO STF – NÃO APLICÁVEL AO CASO – DANOS MATERIAIS NÃO CONFIGURADOS – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA – DANOS MORAIS – MANUTENÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO – PRECEDENTES. I – Consoante artigo 37, §6° da Constituição da República, o Estado responde objetivamente por atos de seus agentes, na medida em que a vítima demonstre a existência de dano e do nexo de causalidade entre a conduta do agente público e o prejuízo sofrido. II – Não há que se falar em responsabilização da empresa locadora, ante a inexistência de ato ilícito praticado em decorrência do objeto contratual, qual seja, a locação de veículos para suprir demanda de ente municipal. III – A culpa da locadora somente poderia ser cogitada se tivesse ela se omitido nos cuidados indispensáveis em relação à locação, ou seja, culpa “in eligendo” ou “in vigilando”, de que nem sequer aduziu o autor, que, apenas, frise-se: se apega ao fato de ser a apelada-ré proprietária do veículo envolvido no acidente. (…)”[3]

Contudo, ainda são poucos os julgados e muitas vezes antigos, e na maioria dos casos, os Tribunais optam pela aplicação indiscriminada da Súmula 492 do STF, atribuindo à locadora de veículos o ônus de arcar com o pagamento de valores milionários.

É necessário, portanto, que o entendimento sobre a aplicação da Súmula 492 do STF ao caso concreto seja revisto pelos Tribunais, a fim de que, caso a Súmula permaneça vigente, as locadoras não sejam penalizadas por atos que não cometeram e não sejam responsabilizadas por pagar indenização, sem prévia previsão legal.

Nesse mesmo sentido, o posicionamento sobre a responsabilidade da empresa intermediadora de transporte por aplicativo deve ser revisto, não devendo permanecer o entendimento pela responsabilidade solidária da empresa quando essa não agiu com culpa.

Nessa linha, é necessário que haja atuação técnica especializada nesse nicho perante os Tribunais, a fim de que o posicionamento equivocado seja revisto, evitando que as locadoras e empresas intermediadoras de transporte por aplicativo sejam condenadas por danos que não deram causa, o que, se eficaz, trará uma significativa redução de passivo às locadoras de veículos, reduzindo os custos, inclusive, para os consumidores desses serviços, os quais, atualmente têm sido essenciais para boa parcela da população, como meio de sua subsistência, na condição de motoristas de aplicativos.

[1] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 60.477 – São Paulo. Recorrente: Laurenz Heinrich Julius Pinder, Recorrida: Auto Drive S/A Importação e Comércio.  Relator: Ministro Antonio Villas Boas. Julgamento: 07/06/1966. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: RTJ v. 37594 DJ 10/08/1966 p. 02646. EMENT v. 00662 p. 327. RTJ v. 00037-08, p. 00594.
[2] Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (Didier Jr., Fredie, BRAGA, Paula Sarno & OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, v. 2, Salvador: Juspodivm.)
[3] (TJ/AM; Relator (a): Wellington José de Araújo; Comarca: Capital – Fórum Ministro Henoch Reis; Órgão julgador: Segunda Câmara Cível; Data do julgamento: 30/09/2019; Data de registro: 30/09/2019)

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