{"id":1791,"date":"2018-02-21T14:55:28","date_gmt":"2018-02-21T17:55:28","guid":{"rendered":"https:\/\/wordpress-471455-1551713.cloudwaysapps.com\/?p=664"},"modified":"2020-10-27T12:54:24","modified_gmt":"2020-10-27T15:54:24","slug":"a-responsabilidade-objetiva-e-a-presuncao-de-inocencia-no-direito-do-consumidor","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.santosesantana.com.br\/en\/a-responsabilidade-objetiva-e-a-presuncao-de-inocencia-no-direito-do-consumidor\/","title":{"rendered":"A responsabilidade objetiva e a presun\u00e7\u00e3o de inoc\u00eancia no Direito do Consumidor"},"content":{"rendered":"
A Constitui\u00e7\u00e3o determina que o Estado promover\u00e1 a defesa do consumidor. O C\u00f3digo de Defesa do Consumidor, por sua vez, trouxe as bases para tal, concedendo \u00e0 administra\u00e7\u00e3o p\u00fablica a compet\u00eancia para aplicar san\u00e7\u00f5es. A tutela das rela\u00e7\u00f5es de consumo, portanto, se d\u00e1 em \u00e2mbito judicial, por for\u00e7a da inafastabilidade dos lit\u00edgios do Poder Judici\u00e1rio e administrativo, por determina\u00e7\u00e3o legislativa.<\/p>\n
A presen\u00e7a de dois \u00e2mbitos de tutela traz efeitos distintos em cada um deles. O STJ vem consolidando o entendimento de que cabe ao Poder Judici\u00e1rio tutelar os direitos do consumidor perante o fornecedor, determinando a recomposi\u00e7\u00e3o da rela\u00e7\u00e3o jur\u00eddica no caso concreto. \u00c0 administra\u00e7\u00e3o p\u00fablica, por sua vez, caberia a fiscaliza\u00e7\u00e3o e puni\u00e7\u00e3o das infra\u00e7\u00f5es administrativas.<\/p>\n
Tal distin\u00e7\u00e3o decorre das diferen\u00e7as entre o poder jurisdicional e o poder de pol\u00edcia. O poder jurisdicional tem como finalidade a solu\u00e7\u00e3o imparcial de conflitos, sendo esta elemento fundamental. Da\u00ed as normas que tutelam extensivamente a imparcialidade do ju\u00edzo, como a veda\u00e7\u00e3o aos tribunais de exce\u00e7\u00e3o e o impedimento e a suspei\u00e7\u00e3o dos ju\u00edzes.<\/p>\n
O poder de pol\u00edcia, por sua vez, traz como fundamento o interesse p\u00fablico, limitando por meio de multas o exerc\u00edcio dos direitos individuais que possam prejudicar o bem-estar coletivo. Trata-se da limita\u00e7\u00e3o da liberdade individual em prol da liberdade difusa, o que n\u00e3o \u00e9 contradit\u00f3rio e encontra suficiente fundamento legal e constitucional.<\/p>\n
O poder jurisdicional e o poder de pol\u00edcia, portanto, t\u00eam fundamento comum (a pacifica\u00e7\u00e3o social), mas se aplicam a rela\u00e7\u00f5es muito diferentes. O poder jurisdicional tutela a rela\u00e7\u00e3o entre as partes, enquanto o poder de pol\u00edcia restringe e limita a liberdade individual de forma a evitar a perturba\u00e7\u00e3o da ordem social. Dessa diferen\u00e7a de status surge a diferen\u00e7a de tratamento entre as partes.<\/p>\n
No processo judicial entre consumidor e fornecedor, marca fundamental dada pelo CDC \u00e9 a invers\u00e3o do \u00f4nus da prova, n\u00e3o absoluta, mas relativa, em benef\u00edcio do consumidor: embora presuma-se verdadeira a alega\u00e7\u00e3o do consumidor, h\u00e1 a possibilidade de se produzir prova em sentido contr\u00e1rio.<\/p>\n
A invers\u00e3o do \u00f4nus da prova se d\u00e1 em virtude da assimetria de informa\u00e7\u00e3o a respeito dos produtos e servi\u00e7os, n\u00e3o do porte econ\u00f4mico. O relevante \u00e9 que o consumidor n\u00e3o possua tanto conhecimento sobre o produto quanto o fornecedor. Por isso, a pessoa jur\u00eddica pode ser consumidora tamb\u00e9m, desde que prove inexistir afinidade entre o bem adquirido e seu objeto social, afastando dele a condi\u00e7\u00e3o de insumo.<\/p>\n
Com o desenvolvimento do Direito Administrativo, fortaleceu-se o ideal de prote\u00e7\u00e3o do indiv\u00edduo. O interesse estatal, que era soberano, foi sendo restringido. A doutrina the king can do no wrong foi sendo relegada ao rodap\u00e9 dos livros de hist\u00f3ria. Entende-se hoje que, embora haja a primazia do interesse p\u00fablico, este n\u00e3o pode suprimir os direitos individuais, sendo necess\u00e1rio para qualquer puni\u00e7\u00e3o o devido processo legal.<\/p>\n
A necessidade do devido processo legal deriva n\u00e3o apenas do texto constitucional, mas tamb\u00e9m da Lei do Processo Administrativo, militando em favor do particular a presun\u00e7\u00e3o de inoc\u00eancia. A esse respeito, Alexandre de Moraes leciona que \u201ch\u00e1 a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indiv\u00edduo, que \u00e9 constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arb\u00edtrio estatal, permitindo-se o odioso afastamento de direitos e garantias individuais e a imposi\u00e7\u00e3o de san\u00e7\u00f5es sem o devido processo legal e decis\u00e3o definitiva do \u00f3rg\u00e3o competente\u201d.
Na tutela dos Direitos do Consumidor, portanto, a rela\u00e7\u00e3o entre fornecedor e consumidor e entre fornecedor e administra\u00e7\u00e3o s\u00e3o distintas e marcadas por diferen\u00e7as essenciais. No primeiro caso, h\u00e1 a marca da hipossufici\u00eancia consumerista, que acarreta na invers\u00e3o do \u00f4nus da prova. No segundo, h\u00e1 a marca das garantias e liberdades fundamentais, presumindo-se inocente o fornecedor at\u00e9 prova em contr\u00e1rio, respeitado sempre o devido processo legal.<\/p>\n
Isso, entretanto, n\u00e3o \u00e9 o que se observa da atua\u00e7\u00e3o de grande parte dos Procons do pa\u00eds. N\u00e3o s\u00e3o raras as vezes em que a autarquia imp\u00f5e pesadas multas ao fornecedor sob o argumento de que milita em favor do consumidor a presun\u00e7\u00e3o de veracidade e a invers\u00e3o do \u00f4nus da prova. Por\u00e9m, essa invers\u00e3o \u00e9 um benef\u00edcio que assiste ao consumidor, n\u00e3o \u00e0 administra\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
N\u00e3o sofre a administra\u00e7\u00e3o da hipossufici\u00eancia e falta de informa\u00e7\u00e3o do consumidor. Em verdade, presume-se que ela seleciona seus agentes e corpo t\u00e9cnico, tendo a possibilidade de averiguar a exist\u00eancia ou n\u00e3o de culpa, podendo requisitar pareceres, of\u00edcios e tomar depoimentos.<\/p>\n
Por outro lado, n\u00e3o causa nenhuma ofensa ao ordenamento jur\u00eddico a exist\u00eancia de responsabiliza\u00e7\u00e3o objetiva perante o consumidor e a absolvi\u00e7\u00e3o do fornecedor perante a administra\u00e7\u00e3o. A responsabilidade objetiva perante o consumidor adv\u00e9m da Teoria do Risco Empresarial, cabendo ao fornecedor contingenciar-se para tal. A puni\u00e7\u00e3o estatal, por sua vez, tem natureza de pena e deve ser aplicada na medida da culpa.<\/p>\n
Embora \u201cpena\u201d remeta ao recolhimento do indiv\u00edduo \u00e0 pris\u00e3o, as multas tamb\u00e9m possuem esse car\u00e1ter, e sua aplica\u00e7\u00e3o deve obedecer a todos os princ\u00edpios, garantias e liberdades fundamentais. Mesmo diante de um suposto e abstrato conceito de \u201cbem geral\u201d, deve-se lembrar que a liberdade e a inoc\u00eancia s\u00e3o a regra. A condena\u00e7\u00e3o e a puni\u00e7\u00e3o \u00e9 que s\u00e3o a exce\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Paulo T. Vasconcellos<\/b> \u00e9 s\u00f3cio do Santos & Santana Advogados, especialista em Propriedade Intelectual, aliado da International Bar Association (IBA) e vice-presidente do Instituto Santos & Santana de Pesquisa e Estudos em Direito.<\/p>\n